segunda-feira, 28 de julho de 2008

Um simulacro de justiça

Eichmann em Cuba

*André Petry

"No Brasil, a turma que criou a estupidez dos 'direitos humanos para humanos direitos' acha que julgar civilizadamente um bandido é excesso de direitos"

Em seu magistral livro sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann, Hannah Arendt (1906-1975) escreveu algo que parece tão elementar que nem precisaria ser lembrado: um julgamento justo requer que o "acusado seja processado, defendido e julgado". Quando capturou e levou Eichmann ao banco dos réus, em Jerusalém, Israel falhou nisso porque montou um tribunal mais interessado em expor a dor coletiva dos judeus do que em apontar os crimes individuais do nazista. A favor de Israel, tudo se deu no início dos anos 60, quando o estado não tinha nem quinze anos, e certos crimes, como o genocídio, eram novidade jurídica. Mas o que os EUA estão fazendo em Guantánamo – do alto de sua bicentenária democracia e de um dos sistemas judiciais mais sólidos do mundo – é pantomima sem atenuantes.

Na segunda-feira, na base de Guantánamo, em Cuba, o governo americano abriu o primeiro tribunal de guerra desde a II Guerra Mundial (1939-1945). O réu é Salim Hamdan, acusado de ser motorista e segurança de Osama bin Laden e de entregar armas à Al Qaeda. Ele foi capturado no Afeganistão, com mísseis no carro, e levado à prisão de Guantánamo. Está lá há mais de seis anos. Seus advogados dizem que apanhou, ficou oito meses na solitária, sofreu constrangimento sexual e foi submetido a privação de sono por cinqüenta dias.

Seu julgamento é uma palhaçada no periférico e uma vergonha no fundamental. O periférico: o réu estava sem roupa adequada para ir ao tribunal, um acusador inventou o texto do juramento e outro abriu os trabalhos lendo um documento errado, até que o juiz pegou a cópia do papel certo das mãos de um jurado. O fundamental: as regras do tribunal foram definidas após a captura do réu, todos os jurados são militares do Pentágono, atacado em 2001, e um documento pedido pela defesa só apareceu na véspera do julgamento – tem 550 páginas. Pode-se dizer que a democracia americana não agiu como os terroristas. Podia tê-lo executado numa casamata em Kandahar, mas levou-o a Guantánamo para, bem ou mal, ser julgado. O equívoco, aqui, é defender a democracia subtraindo-lhe a essência – a civilidade.

Israel tinha razão em julgar os nazistas. Os EUA têm razão em julgar os terroristas. É daí que nasce a perplexidade: por que, tendo razão, o país faz um simulacro de justiça? Poderia julgar os terroristas em tribunais regulares, já experientes no assunto. Em vez disso, a democracia mais festejada do mundo se alia com o que há de pior no mundo. No Brasil, é a turma que criou a estupidez dos "direitos humanos para humanos direitos" e que acha que julgar civilizadamente um bandido é excesso de direitos.

Respeitar os direitos de ladrão de bicicleta é fácil. Difícil é respeitar os direitos de um nazista. Ou terrorista. Não se pode admitir que a democracia americana se comporte como nas farsas, nas quais o tamanho da culpa do réu serve de desculpa para o cancelamento da lei.

*O artigo saiu na Veja desta Semana. Altino Machado enviou o texto para mim.

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