terça-feira, 3 de junho de 2008

O pai que iria acusar o filho

Sócrates, certo dia, ao encontrar seu amigo Eutífron no pórtico do Forum ateniense lhe fez a seguinte pergunta: "O que estás fazendo aqui, sábio Eutífron, neste templo de Têmis? És vítima, és réu, és acusador, és defensor, o que és? Sócrates continuou a falar: "Vítima não podes ser, já que ninguém ousaria cometer qualquer atentado contra homem tão bom. Réu também não, visto que Eutífron é incapaz de violar o direito do mais perverso escravo. Acusador? Acredito não sejas, pois esta tarefa é incompatível com o conhecimento que tens da natureza humana. Imagino que és, então, defensor de alguém".

Eutífron respondeu à Sócrates: "Não sou nada do que falaste, encontro-me na condição de testemunha contra meu próprio pai, que agrediu violentamente um escravo. Estou aqui para denunciá-lo".

Sócrates olhou decepcionado para Eutífron e lhe falou: "Isso é uma impiedade, não podes ser o algoz do teu próprio pai, mesmo que ele seja culpado. Tua ação contraria a natureza das coisas, e se fizeres isto não te terei mais na conta de um homem correto, e também sofrerás o desprezo dos próprios juízes".

Eutífron, após ouvir atentamente seu mestre, fez minuciosa análise de sua consciência, concordou com Sócrates e lamentou o erro que poderia ter cometido.

Para Sócrates, a piedade é componente da justiça, pois sem ela a ira passa a pautar e corromper o conceito de justiça, tornando-se perversamente maligna.A Bíblia também está cheia desses ensinamentos. Tiago alerta que aquele que julgar sem piedade, sem compaixão, sem caridade sofrerá o mesmo julgamento. É a lei da causa e do efeito, tão bem expressa na frase popular "do aqui se faz aqui se paga." Cícero também ensinava que "justiça excessiva não passa de injustiça". E Jesus, no Sermão do Monte, disse: "Bem aventurados os misericordiosos porque encontrarão misericórdia". Essa visão, de piedade ligada ao conceito e justiça, é adotada quase que unanimemente na filosofia, na religião e no direito.

Encontrei, certo dia, no Fórum, um senhor chamado Francisco. Conversando com alguns amigos meus sobre um julgamento que estava acontecendo, percebi que num assento ao lado, seu Francisco escutava o diálogo e concordava com o que eu dizia. Argumentava eu que se um homem trabalhador e bom pai de família ao chegar em seu lar e avistasse sua esposa mantendo relações sexuais com outro homem tinha o direito de defender sua própria honra, e que caso viesse a matá-los deveria ser absolvido. Sei que essa idéia hoje é rechaçada pela maior parte da jurisprudência dos tribunais, no entanto não é isso que a jurisprudência do Tribunal do Júri adota. Se o Júri absolve os matadores passionais é porque a sociedade assim pensa, já que os jurados representam de forma brilhante os sentimentos do homem normal de nosso meio.

Desfeita a roda de bate-papo perguntei aquele senhor se ele era parente do réu que estava sendo julgado, já que estava concordando com o que eu dizia. Ele respondeu que não era parente nem amigo, mas concordava comigo, e que estava ali esperando o próximo julgamento. Falou que seu filho iria ser julgado e que era testemunha de acusação no processo.

Sofri logo de início o impacto, e disse-lhe: "Mas isso é uma malvadeza, uma impiedade. Jamais vi um negócio desses; um pai acusar seu próprio filho? Não, não concordo". Seu Francisco me falou que seu filho não valia nada e que este era culpado pelo crime que cometeu. Confidenciou-me que seu filho já tinha até lhe batido. Asseverei-lhe que culpado todos nós somos e que ele enquanto pai deveria perdoar o filho e ajudá-lo no que pudesse. Lembrei-lhe de como seria triste para o filho dizer na cadeia que tinha sido condenado pela versão de seu genitor. O ódio seria alimentado eternamente, e que caberia a ele se reconciliar com seu filho.

E concluí afirmando que um pai não tem a força para absolver um filho, já que defendê-lo faz parte da ordem natural das coisas; mas que tinha força para condená-lo, pois se o próprio pai acusa, presume-se a culpa. Que, além disso, ao invés de ter o aplauso do Júri, teria o desprezo. "O jurado não acusa seu próprio filho, o juiz não acusa, o promotor não acusa, o advogado não acusa, ninguém acusa, o senhor vai acusar seu próprio filho?"

Convencido do que lhe falei lamentou ser testemunha de acusação, e disse-me que estava obrigado, nessa condição, de testemunhar contra o filho. Respondi que ele não era testemunha, mas simples informante, e que poderia deixar de depor ou até mudar a versão dos fatos para beneficiar seu filho, e que nada aconteceria com ele. Disse-lhe que não estava obrigado a dizer a verdade para acusar seu filho e que ninguém, nem o processo penal, nem a moral, nem a religião exigiria dele conduta diversa.

Percebi o contido lacrimejar nos olhos de seu Francisco e consolei-o. Era um homem cheio de dor e desespero. Ele me agradeceu e disse que iria ajudar seu filho. Soube depois que cumpriu seu propósito.

Seu Francisco não é Eutífron, nem eu – imagine ! – sou Sócrates. Mas a história é um armazém de precedentes, e é realmente a mestra da vida. Senti-me envolvido de boas sensações e fiquei na certeza que tinha realizado pequena, mas nobre missão espiritual, qual seja, a de fazer seu Francisco se reconciliar com o filho, ao mostrar-lhe quão grandiosa é a justiça quando vestida com o belo manto da divina piedade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Entre tantos posicionamentos ilustres seus, discordo desse, pois defendo que mesmo que seja um filho que venha a cometer um erro não devemos acobertá-lo, e sim fazer com que pague na exata medida do erro que cometeu. Perdoá-lo e reconciliar-se com o filho é obrigação do pai, porém, contribuir com a impunidade o tornaria também um assassino da ética.