Sócrates, certo dia, ao encontrar seu amigo Eutífron no pórtico do Forum ateniense lhe fez a seguinte pergunta: "O que estás fazendo aqui, sábio Eutífron, neste templo de Têmis? És vítima, és réu, és acusador, és defensor, o que és? Sócrates continuou a falar: "Vítima não podes ser, já que ninguém ousaria cometer qualquer atentado contra homem tão bom. Réu também não, visto que Eutífron é incapaz de violar o direito do mais perverso escravo. Acusador? Acredito não sejas, pois esta tarefa é incompatível com o conhecimento que tens da natureza humana. Imagino que és, então, defensor de alguém".
Eutífron respondeu à Sócrates: "Não sou nada do que falaste, encontro-me na condição de testemunha contra meu próprio pai, que agrediu violentamente um escravo. Estou aqui para denunciá-lo".
Eutífron, após ouvir atentamente seu mestre, fez minuciosa análise de sua consciência, concordou com Sócrates e lamentou o erro que poderia ter cometido.
Encontrei, certo dia, no Fórum, um senhor chamado Francisco. Conversando com alguns amigos meus sobre um julgamento que estava acontecendo, percebi que num assento ao lado, seu Francisco escutava o diálogo e concordava com o que eu dizia. Argumentava eu que se um homem trabalhador e bom pai de família ao chegar em seu lar e avistasse sua esposa mantendo relações sexuais com outro homem tinha o direito de defender sua própria honra, e que caso viesse a matá-los deveria ser absolvido. Sei que essa idéia hoje é rechaçada pela maior parte da jurisprudência dos tribunais, no entanto não é isso que a jurisprudência do Tribunal do Júri adota. Se o Júri absolve os matadores passionais é porque a sociedade assim pensa, já que os jurados representam de forma brilhante os sentimentos do homem normal de nosso meio.
Sofri logo de início o impacto, e disse-lhe: "Mas isso é uma malvadeza, uma impiedade. Jamais vi um negócio desses; um pai acusar seu próprio filho? Não, não concordo". Seu Francisco me falou que seu filho não valia nada e que este era culpado pelo crime que cometeu. Confidenciou-me que seu filho já tinha até lhe batido. Asseverei-lhe que culpado todos nós somos e que ele enquanto pai deveria perdoar o filho e ajudá-lo no que pudesse. Lembrei-lhe de como seria triste para o filho dizer na cadeia que tinha sido condenado pela versão de seu genitor. O ódio seria alimentado eternamente, e que caberia a ele se reconciliar com seu filho.
Convencido do que lhe falei lamentou ser testemunha de acusação, e disse-me que estava obrigado, nessa condição, de testemunhar contra o filho. Respondi que ele não era testemunha, mas simples informante, e que poderia deixar de depor ou até mudar a versão dos fatos para beneficiar seu filho, e que nada aconteceria com ele. Disse-lhe que não estava obrigado a dizer a verdade para acusar seu filho e que ninguém, nem o processo penal, nem a moral, nem a religião exigiria dele conduta diversa.
Seu Francisco não é Eutífron, nem eu – imagine ! – sou Sócrates. Mas a história é um armazém de precedentes, e é realmente a mestra da vida. Senti-me envolvido de boas sensações e fiquei na certeza que tinha realizado pequena, mas nobre missão espiritual, qual seja, a de fazer seu Francisco se reconciliar com o filho, ao mostrar-lhe quão grandiosa é a justiça quando vestida com o belo manto da divina piedade.
Um comentário:
Entre tantos posicionamentos ilustres seus, discordo desse, pois defendo que mesmo que seja um filho que venha a cometer um erro não devemos acobertá-lo, e sim fazer com que pague na exata medida do erro que cometeu. Perdoá-lo e reconciliar-se com o filho é obrigação do pai, porém, contribuir com a impunidade o tornaria também um assassino da ética.
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