"A advocacia é o maior estado do homem", dizia o filósofo e advogado francês Voltaire. Seu último desejo antes de morrer foi pedir aos seus correligionários que escrevessem em sua lápide a frase: "Eu defendi Calas".
Calas foi acusado injustamente de matar seu próprio filho. Condenado e morto, veio postumamente a ser reabilitado por meio de uma das mais belas defesas criminais de todos os tempos, feita por Voltaire. Sua defesa em favor de Calas depois se transformou no livro Tratado sobre a Tolerância. Símbolo do amor pela verdade, símbolo da nossa profissão.
Quando a Revolução Francesa deteriorou-se em terror, lá estava outro advogado, Maleshesbes, o único a aceitar defender o rei deposto Luís XVI. A condenação era certa, porque como se falava na época, quem tinha um julgador como acusador deveria contratar Deus como advogado. Mesmo assim, Maleshesbes entrou na Convenção e proferiu o seguinte exórdio: "Trago a este Tribunal a verdade e a minha cabeça, podem dispor da minha cabeça, depois de ouvir a verdade". No final do julgamento sua cabeça se abraçou com a do rei no cesto da guilhotina. Símbolo da intrepidez, símbolo da nossa profissão.
Quando Evaristo de Moraes foi procurado para fazer a defesa de um adversário político, acusado de um crime terrível, nos primeiros anos do século XX, acuado pela opinião pública, numa causa impopular, teve que pedir conselho àquele que também foi advogado e mestre da cultura brasileira, Rui Barbosa, que com mestria respondeu ao criminalista: "A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais. Mesmo se a enormidade da infração reveste-se de caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela violenta revolta, nem por isto essa voz deve emudecer. Voz do direito no meio da paixão pública, tão insuscetível de se demasiar, às vezes pela própria exaltação da sua nobreza, tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel. Tratando-se de acusado em matéria criminal, não há causa indigna de defesa".
Rui Barbosa, embora determinando que Evaristo fizesse a defesa não acreditava na absolvição do acusado. Evaristo era um rábula, só se formou em direito aos 45 anos de idade, mas os doutores da Escola de Recife e do Largo de São Francisco já o tinham como o maior criminalista do país. O resultado do julgamento não poderia ser outro: o réu foi absolvido. Rui e Evaristo são símbolos do amor ao direito, símbolos da nossa profissão.
Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais para tirar do cárcere os comunistas Luís Carlos Prestes e Henry Berger, presos, pelo Tribunal de Segurança da Ditadura Vargas, num cubículo que não os cabia em pé. Sobral pinto era um homem conservador e considerado pelos comunistas como de direita. Quando o Cavaleiro da Esperança disse a Sobral que não queria ser defendido por um liberal, a resposta do advogado foi dura e certa: "não defendo você, defendo a liberdade". Sobral morreu pobre, não cobrava honorário. Símbolo da liberdade, símbolo da nossa profissão.
Não podemos esquecer o grande João Alamy Filho, que defendeu os irmãos Naves, acusados de um crime que não cometeram, um graúdo erro judiciário. O Júri os absolveu por três vezes, mas o Tribunal dos togados anulava a decisão do Júri e os condenava. Não existe justiça melhor que a do Júri, sete cabeças tiradas do meio do povo julgam melhor do que uma, presa à lei, ao status e distante da vida concreta dos cidadãos. O Júri é o melhor meio de punir o criminoso, e o melhor abrigo da inocência. Só se critica a justiça do júri, já diziam os mestres, aqueles que não têm capacidade de fazê-lo. Alamy Filho, símbolo da persistência, símbolo da nossa profissão.
Não podemos esquecer Emile Zola na defesa de Dreifus, capitão francês acusado de alta traição. Dreifus sofreu as mais terríveis humilhações. Foi com a atuação do grande escritor que mais tarde veio a se provar a inocência do réu. Da sua defesa, nasceu o imortal libelo contra o arbítrio, Eu Acuso.
A reação, por sua vez, à intrepidez dos advogados partiu de todos os lados mormente dos poderosos.
O general romano Marco Antônio nutria um desejo louco de cortar a língua de Cícero, o maior orador e advogado de todos os tempos. Tanto defendia como acusava impiedosamente. São famosas as catilinárias e as verrinas, discursos de veemente acusação contra Catilina e Verres, conspiradores que atentavam contra a república romana. Assim era Cícero, que na defesa da ética e da verdade defendia acusando. Símbolo do dever, símbolo da honra, símbolo de nossa profissão.
Reeditou a vontade de cortar a língua dos advogados o Napoleão Bonaparte. Extinguiu a ordem dos advogados franceses, mas teve que em pouco tempo institucionalizá-la novamente, por causa da grande revolta que causou na França processos feitos sem direito a defesa. Ver-se daí que o advogado é imprescindível à administração da justiça, exerce função social das mais belas e necessárias da humanidade.
A Santa Inquisição dispensava o advogado porque segundo seus ideólogos, entre eles o medonho Torquemada, serviam apenas para procrastinar o feito. Um processo nesse período durava menos de um dia. À tarde, o cheiro de carne assada, era sinal que um herege já tinha sido condenado. Para os inquisidores se o acusado era inocente não precisava de defesa. Se o réu passasse em cima de brasa quente e não se queimasse, era pessoa sem culpa. Era a justiça das órdalias, sem advogado. Nunca encontrava-se um inocente. Sem advogado não há justiça e sem justiça não há advogado.
Os advogados também foram dispensados no período nazi-fascista e no período stalinista. Morriam sem direito a defesa, nos campos de concentração de Hitler e nos cárceres da Lubianka de Stalin. Trotski, o grande advogado dos acusados nos processos de Moscou recebeu covardemente uma picaretada em seu cérebro a mando de Stalin. Trotski símbolo da coragem, símbolo da nossa profissão.
Sem democracia não há advogado sem advogado não há democracia. Sem advogado e sem democracia, como já denunciava o Águia de Haia, triunfa as nulidades, prospera a desonra, cresce a injustiça, agiganta-se os poderes nas mãos dos maus, os homens desanimam da virtude, riem da honra e têm vergonha de serem honestos. Segundo Pedro Pimentel Gomes, para o advogado enfrentar o despotismo "deve ter a coragem do leão e a mansidão do cordeiro; a altivez do príncipe e a humildade do escravo; a rapidez do relâmpago e persistência do pingo d´agua; a solidez do carvalho e a flexibilidade do bambu".
Os mandamentos do advogado, de Eduardo Couture resume a essência da nossa profissão: estuda, pensa, trabalha, luta, sê leal, tolera, tem paciência, tem fé, esquece, ama a tua profissão. "Procura considerar a advocacia de tal maneira que, no dia em que teu filho te peça conselho sobre seu futuro, consideres uma honra para ti aconselhá-lo que se torne advogado".
Os advogados precisam urgentemente levantar duas bandeiras de luta: a primeira é a exigência da ampliação e do respeito às prerrogativas da classe; a segunda é o combate frontal contra a "juizite" e a "promotorite".
A classe não pode ficar passiva diante da afronta e do desrespeito a suas prerrogativas. Não existe hierarquia entre promotor, juiz e advogado devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Nenhum medo de desagradar quem quer que seja deve deter o advogado na luta pelos direitos de seus clientes. Não existe país livre sem advogados livres.
Acontece que alguns juízes, felizmente são minoria, transformam o poder sagrado que têm de distribuir justiça em mecanismos de iniqüidades e maledicências, abusando de sua autoridade, quedando-se inerte ante a violação da lei e atentando contra os direitos e garantias dos cidadãos, denegando justiça e violando sua imparcialidade, achando-se os donos do mundo, exteriorizando todas as suas frustrações em cima dos mais humildes, geralmente comportando-se com doçura frente aos grandes e com amargor frente aos pequenos. Isso é juizite!
Também existe o promotor que abusa do seu poder de denunciar e acusar, convertendo a desgraça alheia em pedestal para angariar êxitos e satisfazer vaidades, maculando sua ações com empregos de meios condenados pela ética dos homens de honra, esquecendo que deve falar em nome da lei, da justiça e da sociedade. São todos verdadeiros liberticidas atrozes, primeiros a exigirem direitos constitucionais quando caem em desgraças. Isso é promotorite!
Justiça não se constrói com abusos e autoritarismos. Com altivez e coragem os advogados precisam enfrentar esses doentes, representando-os civil e criminalmente, para que possam saber que não estão acima das leis, denunciando-os publicamente, com a mesma verve de Cícero. Nossa história não comunga com covardias. A boa justiça só pode ser alcançada com bons advogados, bons juizes, bons promotores. E com bons protagonistas no mundo jurídico as pessoas dignas triunfam, a honra ascende, a justiça é bem distribuída, o poder transfere-se para as mãos dos justos, os homens passam a defender a virtude, a zombar da desonra, a assumir a condição de honestos nas ações, como bem frisou o escritor Orlando Derezen, parafraseando Rui Barbosa.
Como bem ensinava Couture, "tem fé no direito como o melhor instrumento para a convivência humana; na justiça, como o destino normal do direito; na paz, como substitutivo benevolente da justiça; e, sobretudo, tem fé na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz. E quando encontrares o direito em confronto com a justiça, luta pela justiça." Que sejamos, portanto, como definia Cícero, "os homens de bem que sabem falar!"
4 comentários:
Justo o que escreve e concordo com tudo! Mas quando diz que o advogado deve denunciar os abusos e processar os autores, diz de coração? Alfred Adler diz que "É mais fácil lutar por princípios do que viver por eles". É fácil discurssar e propor esse tipo de coisa, mas isso não gera a mudança que esse ideal tanto reclama. Então eu pergunto novamente,quando diz que o advogado desse reagir, diz de coração, está abraçado com essa proposição ou apenas diz?
Caro André Neri, sua preocupação é justa. Não podemos viver da incoerência. Dizer uma coisa e fazer outra. Procuro, o melhor possível viver de acordo com o que acredito. A caminhada é sempre longa, mas vale a pena. Graças a Deus que analiso cada frase, cada ato, cada pensamento da minha vida e analiso-os a luz da coerência.A quela oração de são Francisco é sempre válida: "Dá-me senhor coragem para mudar o que deve ser mudado e serenidade para aceitar o que não pode ser mudado". Essa sabedoria é de suma importância para estabelecer o limite de nossas objetivos e da nossa vida. Um abraço.
Caro Sanderson, desde os tempos de faculdade, quando eu e você cursávamos História, já sabíamos de seu futuro brilhante. Tuas intevenções, muitas vezes consideradas inoportunas pelos professores, eram sempre instigantes e levavam a muitas reflexões. Hoje sou servidor público e trabalho muito próximo das Ações Penais. Teu texto é uma das mais brilhantes reflexões que já li nos últimos anos sobre o tema. Parabéns. Segue teu caminho. Exerce a profissão para a qual foste forjado. Ainda bem que temos além de bons juízes e promotores, também bons advogados, senão a balança da justiça sempre nos seria desfavorável. Grande abraço.
Olá Ronney. Lembro daqueles nossos tempos da faculdade de história. Sempre tive, nas lutas estudantis, você como um forte aliado, na liderança do curso de história noturno.
Obrigado pelas boas referências ao texto e a minha pessoas.
Um forte abraço.
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